Por Nonato Reis*
Imagine-se o seguinte cenário. Zona rural, vilarejo encravado no cerne de uma região inóspita. Não mais que 70 casas, a maioria de taipa ou de palha. Longe de rodovias asfaltadas. Apenas uma estrada de chão batido, que submerge no inverno, liga o povoado à sede do município, distante dali cerca de 30 quilômetros. Água, só de cacimba ou de poções – aquelas lagoas que se formam na estação chuvosa. Luz elétrica é novidade recente, e ainda assim acessível a poucos. Serviços de saúde não existem. Telefone, idem. Esgoto sanitário, impensável. Os moradores vivem da pesca artesanal e do cultivo rudimentar de raízes e grãos, à semelhança de uma aldeia indígena.
Agora, acompanhe a cena a seguir. Oito horas da manhã. Um carro de passeio estaciona em frente da única escola do lugar, construída em alvenaria e telha de barro. À entrada do prédio, um grupo de alunos, na faixa de sete a 10 anos, denominado Comissão de Publicidade, aguarda com ar de expectativa a aproximação do visitante ilustre, um jornalista da capital, que vai fazer uma reportagem para um grande jornal. Perfilados, eles dão as boas-vindas ao repórter, dizem que a escola se sente honrada com a sua presença e o convidam a entrar.
Na sala de aula, os demais alunos, dispostos em mesas circulares, cumprimentam-no um a um. Curiosos, querem saber detalhes do seu trabalho. Alguns manifestam-se fascinados pela profissão, outros revelam que, quando crescerem, desejam também se tornar jornalistas. Crivam-no de perguntas. Boquiaberto, o repórter se dar conta de que fora arrastado para o outro lado da mesa. Naturalmente, chegara ali para inquirir, observar, fazer anotações, cumprir o seu ofício. Acabara virando presa fácil. Ele agora era entrevistado, vasculhado…investigado. “Foi a experiência mais inusitada e feliz da minha vida”, revelaria ao chegar à redação do jornal.
Mero deleite? Um roteiro de filme? Uma tomada de novela? Ou viagem imaginária? Nada. Crível ou não, a descrição é real. Ocorreu alguns anos atrás no interior do Maranhão. Resgato essa história para jogar por terra alguns mitos. O mais importante deles, o de que educação é um investimento de longo prazo. Não é bem assim. A menos que a analisemos sob o enfoque do mercado de trabalho. Nesse caso confunde-se o todo com a parte. O lado mais interessante, o do crescimento pessoal, é quase atemporal, tal a velocidade com que as mudanças se processam.
No caso da cena descrita aqui, a escola tinha apenas um ano de existência e já produzia resultados fantásticos, fazendo com que crianças indefesas, medrosas e tímidas rompessem as amarras da ignorância e se tornassem pessoas bem-falantes, desinibidas, perspicazes … Cidadãs no sentido político do vocábulo. Alguém pode estar se perguntando. Mas como foi isso possível? A resposta está na fórmula pedagógica. A escola em foco difere em tudo do modelo tradicional. Em vez de carteiras, mesas. No lugar da abordagem individual, a sistemática de grupo. O professor deixa de ser transmissor e passa a ser mediador. Nada de impor conhecimento. E muito menos discutir realidades estranhas. O foco da aprendizagem está centrado na própria comunidade.
É de se perguntar, então. Se o método é tão eficiente, por que não disseminá-lo pelo País? Em todo o Brasil há experiências isoladas desse tipo e com resultados igualmente promissores. Acontece que existem entraves históricos pelo caminho. Há uma relação direta entre poder político e educação. Como no Brasil as minorias dominantes foram construídas e se mantêm à custa do atraso e da ignorância das maiorias dominadas, chega a ser irracional imaginar-se que elas se interessem por uma educação de qualidade. Seria como criar-se uma raposa dentro do galinheiro.
Não admira portanto que até hoje o País sustente taxa de analfabetismo absurda. Um em cada cinco cidadãos é analfabeto funcional, aquele que, apesar de saber ler e escrever, não consegue interpretar um texto, por mais simples que se apresente. Representa quase 40 milhões de brasileiros à margem do saber, condenado à ignorância. A escola que forma cidadão e abre janelas para a vida está muito longe do cenário nacional. Pode-se encontrar em raríssimos lugares, alguns até inusitados. Como no coração de uma mata virgem, por exemplo. É que de lá os ecos de mudança não incomodam os ouvidos de Brasília.
Nonato Reis é Jornalista
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