A memória não retém o momento, o clima, a emoção.
Hoje, 15 de março de 1985 é apenas uma data, fonte de tantos julgamentos e versões. O tempo é uma invenção do homem, e as datas redondas nos seduzem a construir o passado.
Na história do Brasil tivemos momentos de grandes inflexões. Mas aquela data será julgada no futuro como um instante em que a história se contorcia. Ela marca o fim de um período marcado por revoluções, golpes de Estado, militarismo – agregação de poder político ao poder militar – e instalação de uma democracia de massa, que o país jamais conhecera.
Um Estado Social de Direito, o exercício pleno da cidadania, das liberdades individuais e dos direitos sociais.
Os que vivem hoje jamais poderão avaliar o que estava em jogo naquela noite de 14 para 15 de março. A nove horas de tomar posse, o abdômen de Tancredo Neves, presidente eleito, começava a ser aberto no Hospital de Base de Brasília. Não se sabia que ali começava o seu martírio e a sua agonia.
A realidade imitava a ficção. O país atônito. Os políticos envoltos em perplexidades não tinham nenhum grupo mobilizado. Reuniam-se improvisadamente na Câmara e no Senado. Os jantares organizados para antecipação da festa se transformavam em desorientação e tristeza. O ministro do Exército comunicava ao chefe da Casa Civil, Leitão de Abreu, que iria voltar ao seu posto de comando e desencadear uma ação para interromper o longo processo da transição.
No meio de tudo isso, dois homens aparecem, mostram grande espírito público e capacidade de gerir crises: Ulysses Guimarães e Leônidas Gonçalves.
Quando, tomado de profunda emoção e saindo de uma depressão que escondi do país durante vários meses, voltado totalmente para o problema humano de Tancredo, disse a Ulysses que não desejava assumir sozinho, ele, rispidamente e mostrando sua fibra de grande chefe, me disse: “Não é hora de sentimentalismos, Sarney. Temos deveres com a nação. Um processo tão longo de luta pelas instituições não pode morrer nas nossas indecisões”.
O general Leônidas, já escolhido ministro do Exército, partiu para ações concretas: “Vamos ao Leitão de Abreu, não para discutir a sucessão, mas para dizer que amanhã, às 10 horas, o vice-presidente, conforme determina a Constituição, irá prestar juramento perante o Congresso e assumir a Presidência até o restabelecimento de Tancredo”.
E assim fez, em companhia de Ulysses e dos senadores José Fragelli e Fernando Henrique Cardoso. As mesas do Senado e da Câmara decidiram no mesmo sentido. O Supremo Tribunal Federal, convocado secretamente pelo presidente Cordeiro Guerra, deliberou que esse era o caminho da Constituição.
Quando me comunicaram as conclusões, às três horas da manhã, eu era um homem batido pelo imprevisto. Tomei posse “com os olhos de ontem” e enfrentei o desconhecido dos anos que estavam à frente.
Passados 30 anos, o brasilianista Ronald Schneider, que estudou as transições democráticas, diz que a do Brasil foi a mais exitosa.
Iniciou-se a Nova República com o lema “Tudo pelo social”.
Enfrentei 12 mil greves, convoquei a Constituinte, implantamos uma democracia social, rompemos com a ortodoxia econômica com o Plano Cruzado, alcançamos a mais baixa taxa média de desemprego de nossa história –3,59%.
Até hoje não se repetiu o crescimento econômico daqueles anos.
Relembro nesta data Tancredo Neves. Afonso Arinos disse: “Muitos deram a vida pelo país, mas Tancredo é o único que deu a sua morte pelo Brasil”.
Esta é a história destes 30 anos de paz social, de alternância de poder e da presença do proletariado nas decisões nacionais.
Estou assistindo na televisão, comentários dos nossos ministros “caras-de-pau”, Rosseto e Cardozo”, justificando a incompetência do governo do PT. O que estão propondo é que precisamos contar com muita sorte para termos o direito de viver bem e de morrer em paz.
Não existem salvadores, protetores dos pobres, defensores dos oprimidos. São todos mentirosos. Todos.
Só existe uma maneira de um país “se salvar”: é pelo cumprimento do acordo social, pela aceitção das regras por toda a comunidade. Pela lei.
Sarney assumiu nos idos de março de 1985. Nos idos de março de 44 a.C., Júlio Cesar levou 23 punhaladas aos pés da estátua de Pompeu. Nos idos de março de 2015, o Brasil saiu às ruas em protesto contra um péssimo governo. O que restará destes idos de março? Seja o que for, espero que esteja dentro da lei. Porque a história já mostrou: com a sorte nós não podemos contar.